domingo, 26 de abril de 2009

Albert Camus fala do amor-ausente numa cidade fechada pela peste

Posted in by Bruno Marconi da Costa | Edit

      “Afinal, para falarmos mais expressamente dos amantes – são os de maior interesse e deles o narrador está talvez mais habilitado a falar –, esses encontravam-se ainda atormentados por outras angústias, dentre as quais é preciso assinalar o remorso. Essa situação, na verdade, permitia-lhes analisar o seu sentimento com uma espécie de objetividade febril. E era raro que nessas ocasiões suas próprias fraquezas não lhes aparecessem mais claramente. A primeira ocasião que encontravam para isso estava na dificuldade que tinham em imaginar com precisão os atos e os gestos do ausente. Lamentavam o desconhecimento de como empregava o seu tempo, acusavam-se de seu descuido em informar-se disso e de como haviam fingido acreditar que, para um ser que ama, o emprego do tempo do ser amado não é a fonte de todas as alegrias. Era-lhes fácil, a partir desse momento, recordar o seu amor e examinar-lhe as imperfeições. Em épocas normais, sabíamos todos, conscientemente ou não, que não há amor que não se possa superar e aceitávamos no entanto, com maior ou menor tranquilidade, que o nosso permanecesse medíocre. Mas a recordação é mais exigente. E, muito logicamente, essa desgraça que nos vinha do exterior e que atingia toda uma cidade não nos trazia apenas um sofrimento injusto com que teríamos podido indignar-nos; levava-nos a incitar mais sofrimento em nós mesmos, fazendo-nos, assim, consentir na dor. Essa era uma das maneiras que a doença tinha de desviar a atenção e de baralhar as cartas.”

[…]

     “Entretanto e o mais importante é que, por mais dolorosas que fossem essas angústias, por mais pesado que estivesse esse coração, apesar do vazio, pode-se dizer efetivamente que esses exilados, na primeira fase da peste, foram privilegiados. Na verdade, no próprio momento em que a população começava a aflingir-se, o pensamento deles estava inteiramente voltado para o ser que esperavam. No desespero geral, o egoísmo do amor preservava-os, e, se pensavam na peste, era apenas na medida em que ela trazia à sua separação o risco de se tornar eterna. Tinham, no meio da epidemia, uma distração salutar que se era tentado a considerar como sangue-frio. O desespero salvava-os do pânico, havia algo bom na sua desgraça. Por exemplo, se acontecia que um deles fosse levado pela doença, era quase sempre sem que tivesse tido tempo de se precaver contra isso. Arrancado a essa longa conversa interior que mantinha com uma sombra, era então lançado, sem transição, para o mais espesso silêncio da terra. Não tivera tempo para nada.”

CAMUS, Albert. A Peste.

     Ao ler essa parte do livro, veio-me imediatamente o seguinte pensamento: “É necessário estar exilado no meio de uma peste bulbônica para sentir isso?”. A resposta chegou imediatamente, trotando.

     De fato, a ausência traduz impacientemente um desejo de imaginação, e muitas vezes cai-se na armadilha de saciá-lo. E cria-se hipóteses, imagina-se, percebe-se míseros detalhes não percebidos anteriormente, quando o amor ainda era amor-em-presença. Essa “objetividade febril” domina, quase que inconscientemente, o tempo de ócio e, em um certo momento, surge o estalo gritando que perde-se tempo demais torturando-se em imagens teóricas praticamente impossíveis de serem comprovadas empiricamente. Percebe-se que o tempo empregado na distante pessoa amada é inútil e sacrificante.

     Quando esse estalo ocorre, o amor-em-ausência vai embora. E com ele o próprio sentimento de ausência. Liberta-se do ócio e dos grilhões do sofrimento. O ócio-destrutivo se auto-destrói, e somos, enfim, livres (pelo menos nesse contexto).

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Last

Posted in by Bruno Marconi da Costa | Edit
Ela me apareceu de repente, com um ar de desprotegida e abandonada. A vi como um pequeno gato, com belos olhos e jeito meigo, enroscando em minha perna na rua. Um ser que eu precisava cuidar com todo carinho, afeição, sorrisos, abraços, passeios... Kundera usaria outra metáfora, talvez: a de um bebê que chega num cesto pelo rio. E esse encontro me encantou.

E com esse encanto reconceituei o que eu pensava sobre o amor. Daquele amor distante, intocável e cruel ao coração, tornou-se o Amor de querer bem. De cuidar, de desejar a felicidade do outro acima da sua própria. E por muito tempo a amei, e talvez a tenha amado como nunca amara ninguém antes.

Um adendo paralelo ao assunto: talvez para as pessoas que achem o ser humano naturalmente individualista, o Amor seja um milagre divino, inexplicável pela razão. Eu prefiro pensar da maneira contrária: que o ser humano só pode viver junto de outros seres humanos, e que o Amor é normal e natural. E eu prefiro MUITO que seja assim.

Retomando:

Escolha após escolha, cenário após cenário, circunstâncias após circunstâncias, tudo foi mudando. Aos pouquinhos, assim, a cada momento o relacionamento mudava de caminho, chegando a ter rupturas bruscas, desculpas esfarrapadas e perdões destituídos de sentido. Parecia, mesmo assim, que o amor não era posto a prova.

Enfim, tornou-se clara a última escolha do nosso casal. Ela escolheu seguir com as próprias pernas, e eu escolhi respeitar a escolha dela. Não que eu tenha sido as pernas dela por todo o tempo que ela surgiu na minha vida, mas eu sempre me vi, creio que não erroneamente, como uma pessoa que ela sempre podia contar e que sempre, pelo menos, TENTAVA dar uma base de compreensão da vida com mais sorrisos e cores, com mais belezas e flores.

Creio que, no fim, eu fiz certo. De fato, não podemos apoiar a nossa vida em ninguém, no sentido de precisar desse alguém para viver. Apesar da grande vontade que sinto as vezes, chorar turbilhões de indisposições para a vida seria hipocrisia sobre o que eu mesmo falava a ela. O querer-bem está sempre relacionado ao outro, e nunca uma necessidade egoísta de manter esse outro amarrado a algemas ao seu pulso.

E, mesmo com todos os problemas que afloraram...

...

O que eu mais quero é que ela esteja bem, seja lá onde for.